Deixar a noite ser noite

A poluição luminosa é a de que menos se fala sendo, até por definição, a mais visível. A “revolução” tecnológica dos LED, que poderia ser uma oportunidade para iluminar menos mas controlar a poluição luminosa, está a transformar-se num erro. O investigador Raul Cerveira Lima explica porquê.

 

Cidades inundadas de luz

Iluminamos de mais. Nas cidades, principalmente, destruímos a noite. Destruímos o conceito de noite. Nas cidades, noite é ausência de luz directa ou difusa do Sol. Nas cidades, noite é um conceito astronómico sem significado visível. Nas cidades, noite é um intervalo de tempo. Nas cidades, noite é dia.A luz artificial emitida para o céu e que o torna pálido e sem astros, não tem, porém, fronteiras e não se confina às cidades, vilas, aldeias ou outras fontes de poluição luminosa. Os seus efeitos propagam-se a dezenas ou centenas de quilómetros, afectando regiões que, de outro modo, estariam livres de poluição luminosa.

O céu não é iluminado apenas pela luz directa dos candeeiros de exterior mal concebidos, sem resguardo ou com ópticas inadequadas, que deixam que a sua luz se propague para os lados ou para cima. De facto, grande parte do brilho artificial do céu é provocado por reflexão da luz no solo e edifícios. A única forma de diminuir essa contribuição é reduzindo de uma forma geral a potência (ou, melhor, o fluxo luminoso) das fontes de luz e os candeeiros desnecessários, não usar luz branca e, sobretudo, se se pretender que haja uma redução significativa quer do impacto ecológico sobre fauna e flora, quer de produção de dióxido de carbono de origem antropogénica, proceder a uma mudança cultural no uso da luz artificial no exterior.

Contrariamos a noite. Porém, o cansaço chega-nos naturalmente quando chegam as horas da noite. Prova de que, inscrito na evolução natural da maior parte dos seres vivos, existe um ciclo natural, o ritmo circadiano, regulado pela luz solar, pela rotação da Terra, e que as sociedades modernas teimam em combater. O mais recente estudo que avaliou o nível global de poluição luminosa de exterior (Novo Atlas Mundial do Brilho Artificial do Céu, Falchi et al), publicado no ano passado, concluiu, por exemplo, que 99% da população europeia e norte-americana vive sob céus contaminados por poluição luminosa, e que a Via Láctea, a galáxia onde vivemos, deixou de ser visível para 60% dos europeus.

Portugal não é excepção. Pelo contrário, é um dos países que mais iluminam a sua noite. Segundo o mesmo estudo, nenhum cidadão nacional vive sob um céu sem poluição luminosa.

Menos pode ser mais

Fruto de um crescimento económico rápido e de mudanças sociais profundas desde a democracia e da entrada na União Europeia (então CEE), a luz de exterior no país foi uma forma de revelar e ostentar esse crescimento, dar vida e animar os municípios. As consequências directas no aumento do brilho do céu não foram minimamente consideradas.

“Muita luz” não é sinónimo de desenvolvimento. Se assim fosse, por que é que cidades e localidades de outros países europeus como a Alemanha, Espanha, França, Reino Unido, entre outros, usam deliberadamente menos luz do que nós, em muitos locais reduzindo ou desligando pura e simplesmente as luzes nos períodos de menor fluxo – por exemplo, entre as 23h ou meia-noite e as 6h, altura em que praticamente não há ninguém nas ruas? Por que é que países ou regiões desses países tidos como mais desenvolvidos têm ou estão a introduzir medidas de regulamentação da luz à noite, quer de iluminação pública quer privada (como os ecrãs publicitários)?

A redução da iluminação e o respeito pelo meio ambiente e pelo céu nocturno revelam uma gestão inteligente de recursos e bens, e uma preocupação com o planeta. O combate às alterações climáticas é também ele incompatível com a manutenção dos níveis de iluminação actuais e poluição luminosa associada. Tudo o que seja a mais neste campo é desperdício, é delapidação de recursos, é produção de dióxido de carbono em excesso.

Atentemos a um paradoxo: a poluição luminosa é possivelmente a de que menos se fala sendo, simultaneamente e por definição, a mais visível. Vivemos imersos numa atmosfera poluída sem, muitas vezes, estarmos cientes dos níveis de poluição atmosférica. Aos poucos, tentam-se medidas que minimizem esses impactos – de que as (infelizmente) raras restrições ao trânsito rodoviário ou o número crescente de veículos com propulsão eléctrica são um exemplo de que o problema é reconhecido.

Vivemos também imersos em poluição sonora, rodeados de ruído de origem diversa, desde o tráfego rodoviário ao proveniente dos aparelhos de ar condicionado, passando pelo ruído das obras, aviões ou mesmo dos telemóveis nos locais e alturas mais inconvenientes.

Estamos cientes da contaminação de aquíferos, de águas superficiais, da poluição dos oceanos, e abrem-se e fecham-se praias ou emitem-se recomendações com base nos parâmetros de poluentes presentes. Já relativamente à poluição luminosa, pouco ou nada se faz.

Tal como a sonora mas ao contrário de outras que deixam resíduos e efeitos a médio ou longo prazo, a poluição luminosa desaparece no instante em que se desligam os interruptores ou, pelo menos, reduz-se de forma simples para níveis aceitáveis, bastando diminuir a quantidade de luz. É sintomático que a poluição luminosa raramente surja nos manuais escolares ou ambientais como forma de poluição. Tão-só, por vezes, uma pequena referência ao efeito na astronomia e ao deslocamento de observatórios astronómicos para regiões remotas.

À força de LED branco

A luz à noite é um bem, uma necessidade. Mas não é, não pode ser, para reproduzir o dia. Deve ser, quando muito, a suficiente para podermos circular sem tropeçarmos, para vermos o caminho adiante, para que os condutores nos vejam se nos abeirarmos de uma passadeira, para executarmos tarefas mínimas sem ser em escuridão total.

Os veículos automóveis têm luz própria e a existência de uma correcta sinalização vertical e horizontal é quase sempre suficiente para a circulação em segurança, ao contrário do que é habitualmente propalado e executado. Uma prova disto, entre outras: não raro, vemos nas cidades veículos a circular à noite com os faróis desligados, o que é obviamente um factor de grande risco para peões, condutores e passageiros. Isso ocorre porque há luz a mais nas ruas, tanta que o condutor nem sentiu necessidade – e, por isso, se esqueceu – de ligar os faróis do veículo.

E se já usávamos luz a mais e mal dirigida (candeeiros tipo globo, sem resguardo superior, ou outros sem resguardo lateral), agora chegam em força, descontroladamente, os LED brancos. Se alguns destes têm a vantagem de as suas ópticas orientarem a luz maioritariamente para baixo (onde é realmente necessária) e de o fluxo ser regulável, têm porém muito maior impacto no brilho do céu e no ambiente. De facto, não só a luz dos LED brancos se dispersa mais na atmosfera do que as fontes de luz com menos percentagem de azul no seu espectro (caso das lâmpadas de sódio ou dos LED âmbar e pc-âmbar, ou fósforo convertido), como acaba por iluminar-se mais excessivamente do que antes, gastando-se embora menos energia.

Esta mudança de tecnologia, que poderia ser uma oportunidade para iluminar menos e com melhor controlo da poluição luminosa, está a transformar-se num imenso erro: iluminar mais e com mais luz branca do que a que existia, com diversos impactos negativos.

PÚBLICO -

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Mapa do brilho artificial do céu actual (imagem da esq.) vs. brilho do céu se toda a iluminação actual fosse substituída por LED branco sem aumento do fluxo de luz relativamente ao actual The new world atlas of artificial night sky brightness

Há outras fontes perturbadoras: os enormes painéis LED publicitários que brilham intensamente noite fora, no exterior de centros comerciais ou em entradas de cidades. Uma solução para não os eliminar seria determinar horários de funcionamento desses painéis, consoante a hora solar, não sendo permitidos uma hora e meia a duas horas após o pôr do Sol (ou seja, em período de noite dita astronómica). Outra fonte de poluição luminosa – em particular, de encandeamento – são os stands a céu aberto de automóveis ou camiões, tão comuns ao longo das estradas.

E que dizer da iluminação de monumentos e de fachadas, quantas vezes dirigida de baixo para cima, ultrapassando o limite da fachada e dirigindo-se para o céu? Esta iluminação, se estritamente necessária, deve ser feita sempre de cima para baixo.

Ou a proveniente de algumas estufas? Sem que se conheçam totalmente os efeitos a médio ou longo prazo na toxicidade (ou outros), estão já a ser utilizados LED (brancos) para estimular o crescimento ou para reduzir fungos em algumas plantas. Apesar do crescimento ser mais rápido, as plantas deixam de ter o repouso natural à noite e passam a uma situação de stress e de permanente fotossíntese. O céu, mais uma vez, é fortemente prejudicado pela iluminação branca intensa que sai pela cobertura dessas estufas.

Os LED brancos também são apresentados aos municípios e aos cidadãos como o último grito da tecnologia, da eficiência e da poupança. É normalmente dada uma comparação entre a potência, a manutenção e os longos tempos de vida prognosticados para os LED face às tecnologias actuais, entre as quais as lâmpadas de vapor de sódio de alta e baixa pressão, no caso da luz de exterior, e as incandescentes ou fluorescentes no caso da interior. Embeleza-se o pacote com referências – não provadas – à “vantagem” da melhor discriminação cromática por eles conseguida do que com a iluminação actual de tom amarelado (a de sódio), à segurança rodoviária e criminal e, inclusive, à “ausência de poluição luminosa”.

 

Fonte: Poluição luminosa. Deixar a noite ser noite, Raul Lima (PÚBLICO)